Caruaru é a maior cidade do
interior de Pernambuco, conhecida como Capital do Agreste, terra da feira que
“faz gosto a gente vê, de tudo que há no mundo, nela tem pra vendê”, conforme
cantava Luiz Gonzaga.
|
Mas o que pouca gente sabe é que em Caruaru também tem pelo menos um psiquiatra bageguiano ― adepto dos métodos gauchescos do analista de Bagé, com adaptações aos costumes nordestinos. Ele recebe a clientela trajado de gibão, alpercatas e chapéu de couro. Em vez de divã, tem uma rede rosa-shocking instalada no consultório, na qual os pacientes se deitam, desfiam queixumes e resenham seus pecados.
Outro dia, o filho de respeitado
coronel midiático entrou no consultório aparentemente avexado, com as mãos nos
bolsos, talvez para dissimular o nervosismo. Mas não passou despercebido pelo
tarimbado terapeuta.
― Que foi que aconteceu, cabra?
Parece que viu lobisomem!
― Não é nada não, doutor. Já faz
muito tempo que eu queria falar com o senhor… Mas tava evitando, porque dizem
que só vem aqui quem tá com o miolo mole…
― Nada disso, meu jovem. O que mais
atendo aqui é cabeça-dura.
― Apois eu quero me consultar.
― Então, deite aí na rede e
desembuche.
― Deitar?! Precisa isso?!
―Sim, que é pra você relaxar e
liberar a alma do cabresto.
O rapaz deitou-se, mas manteve as
mãos nos bolsos.
― Por que não tira as mãos dos
bolsos?
― É que o ar condicionado tá
fazendo muito frio…
― Acho que você tá é com medo de
desmunhecar na minha frente.
― Hein?!
― Deixa pra lá. Vamos ao que
interessa. O que foi que trouxe você aqui? Que bicho te mordeu?
― Num é nada demais não, doutor. É
que ando cismado comigo mesmo… ― ficou meio alheado, olhando para o teto.
― Continue.
― De repente, perdi o interesse por
quase tudo: parei de andar com os amigos de sempre, larguei a namorada e até
deixei de assistir televisão, coisa que eu gostava muito… ― continuou com olhar
fixo no teto.
― Bom, parar de andar com amigos e
largar a namorada, a gente até que entende, não parece coisa tão grave. Mas
deixar de assistir televisão é um tanto esquisito, preocupante. Isso, sim, pode
indicar um comportamento anormal. Tem alguma ideia dos motivos que levarem você
e se comportar assim?
― Sei não, doutor, sei não… ―
pensou um pouco e concluiu: ― Acho que deve ser por causa dessa campanha toda
que tão fazendo contra nós…
― Nós, quem?! De que campanha você
tá falando?
O jovem mexeu-se inquieto, e a rede
balançou suave.
― Dessa que diz que ninguém pode
mais nem dar umas porradas num boiola. Toda hora tem alguém na tevê dizendo que
a gente tem que parar com o preconceito, com a violência contra os gays, essas
coisas. Isso aperreia a gente.
― Peraí! Na verdade, isso quer
dizer que você é homofóbico.
― Chame como quiser. Só sei que não
gosto de baitola. Tenho raiva de pirobo.
― Nesse caso, você procurou a
pessoa certa. Homofobia é doença, precisa ser tratada. Aliás, qualquer fobia é
sinal de neurose e pode evoluir para uma psicose.
― Num é nada disso, doutor! Doença
mesmo é boiolice. Doente é quem queima a rosca.
― Mas homofobia é veadagem
enrustida, cabra!
― Como assim?! O senhor tá me
chamando de viado?
― Não, porque acho que você ainda
não deu… Entende?
― Nem dei nem pretendo dar.
― Aí é que tá o problema: você
reprime o seu impulso homossexual, não tem coragem de se revelar, por isso
descarrega nas pessoas assumidas. Inveja dos ânus libérrimos. Sacou?
O terapeuta se levantou, foi até a
estante, pegou uma garrafa contendo uma beberagem, encheu uma caneca e se
aproximou do paciente.
―Isso aqui é uma garrafada que
inventei com ervas da caatinga, uma verdadeira panaceia: amansa corno brabo,
mulher arengueira e biriteiro valentão, entre outras serventias. Só não cura
político corrupto, que esse aí não tem mais jeito. Acho que vai resolver seu
problema. Tome.
O rapaz ficou meio cabreiro, mas
pegou a caneca e bebeu devagar. Fechou os olhos, parecendo meditar. Súbito,
saltou da rede, agarrou o psiquiatra de Caruaru pelo guarda-peito do gibão,
sacudiu o homem violentamente, fazendo o chapéu de couro voar longe, e gritou
histérico:
― Agora me bate! Me cospe! Me joga
na parede! Me chama de lagartixa!
Empurrou o terapeuta cabra da
peste, que se estatelou no chão. Saiu disparado. Na porta, ouviu o psiquiatra
lhe perguntar:
― Não vai pagar a consulta?
― Pagar?! Que pagar que nada, eu
vou é processar você e pedir indenização por danos morais.
― Como assim? Baseado em quê?
O ex-machão pôs as mãos nos
quadris, respirou fundo, sacudiu a cabeça para os lados e respondeu:
― É proibido tratar bichice como
doença, e você tratou um homofóbico, que, como você mesmo diz, é um viado
enrustido. Agora liberei de vez. Morou?!
*Fernando Soares Campos é escritor
e colunista.
Fonte: Alagoas Net
Nenhum comentário:
Postar um comentário